A literacia ecológica do Sistema Plantio Direto: percepção e prática regenerativa na agricultura

04-09-2025

Por Afonso Peche Filho, pesquisador científico do Instituto Agronômico de Campinas (IAC)| Doutorado em Ciências Ambientais

A noção de literacia ecológica, entendida como a capacidade de compreender, interpretar e aplicar conhecimentos relacionados ao funcionamento dos sistemas naturais, tem se tornado cada vez mais essencial no campo agrícola. Ela vai além da simples alfabetização ambiental e constitui uma forma ampliada de consciência crítica e prática ecológica, em que o agricultor aprende a “ler” a natureza, decifrar os sinais do solo, da água e da biodiversidade, e a agir de acordo com essa leitura. Nesse sentido, o Sistema Plantio Direto (SPD) se apresenta não apenas como uma técnica conservacionista, mas como um instrumento poderoso da agricultura regenerativa, pois permite restaurar processos ecológicos, aumentar a resiliência dos agroecossistemas e transformar a relação entre agricultor e ambiente.

O SPD nasceu como resposta às consequências negativas da agricultura convencional, que durante décadas mobilizou intensamente o solo, causando erosão, compactação, degradação biológica e perda de fertilidade. Ao propor três princípios fundamentais, a não revolvimento do solo, a manutenção de cobertura permanente e a diversificação de culturas, o SPD trouxe à tona uma nova forma de olhar o ambiente produtivo. Contudo, o êxito pleno dessa prática depende da capacidade de interpretação ecológica do agricultor. É aqui que entra a literacia ecológica: sem ela, o SPD pode se reduzir a um conjunto de técnicas mecânicas; com ela, torna-se um verdadeiro caminho regenerativo.

Compreender o solo como organismo vivo é o primeiro passo da literacia ecológica aplicada ao SPD. O agricultor biofílico, que desenvolve sua sensibilidade para “ouvir” e interpretar a vida subterrânea, percebe que a palhada não é apenas resíduo vegetal, mas habitat, alimento e regulador térmico da superfície edáfica. Essa leitura o conduz a decisões mais conscientes, como a escolha adequada de plantas de cobertura, a rotação que favorece diferentes grupos de microrganismos, ou a introdução de espécies que aprofundam raízes e ativam interações simbióticas. A literacia ecológica, nesse caso, é a chave que transforma um manejo rotineiro em uma estratégia de regeneração.

Na dimensão hidrológica, o SPD expressa outro aspecto fundamental da literacia ecológica: a capacidade de compreender o ciclo da água. A palhada no solo reduz o impacto das gotas de chuva, favorece a infiltração e minimiza o escoamento superficial. O agricultor que internaliza esses processos percebe a relação direta entre infiltração, recarga dos aquíferos, disponibilidade de água para as culturas e redução de enchentes em áreas vizinhas. Trata-se de uma leitura ampliada da paisagem, em que a prática agrícola passa a dialogar com os fluxos ecológicos regionais, reforçando o papel regenerativo do SPD na escala da bacia hidrográfica.

Do ponto de vista biológico, a literacia ecológica permite reconhecer o solo como um ecossistema de alta complexidade. Minhocas, colêmbolos, fungos micorrízicos, bactérias fixadoras de nitrogênio e outros organismos compõem uma rede funcional que regula a disponibilidade de nutrientes e confere resiliência às plantas. A prática do SPD, ao reduzir a perturbação mecânica, cria as condições necessárias para que essa vida floresça. Contudo, é o agricultor com literacia ecológica que enxerga esses organismos como parceiros indispensáveis, orientando o manejo para estimular sua atividade. Assim, a agricultura deixa de ser extrativista e passa a assumir um caráter construtivista, em que cada decisão de manejo se conecta com a saúde do ecossistema.

É importante reconhecer que a adoção do SPD sem literacia ecológica plena pode gerar distorções. Em muitos casos, agricultores mantêm o solo coberto, mas praticam monocultivos intensivos, abusam de herbicidas ou não diversificam as culturas, limitando a capacidade regenerativa do sistema. Essa realidade evidencia que o SPD não é, por si só, regenerativo; ele se torna regenerativo quando guiado pela consciência ecológica, quando cada princípio técnico é compreendido em sua dimensão sistêmica. A literacia ecológica, portanto, é o filtro crítico que diferencia o uso superficial da técnica de sua aplicação transformadora.

No campo da agricultura regenerativa, o SPD ocupa papel estratégico justamente porque materializa a visão de que a produtividade está vinculada à restauração da saúde do solo e da paisagem. Essa visão rompe com a lógica linear da agricultura convencional, que busca apenas retirar recursos, e inaugura um paradigma circular, em que a matéria orgânica retorna ao solo, a biodiversidade é estimulada e a energia é captada de forma mais eficiente. O agricultor que desenvolve literacia ecológica percebe, por exemplo, que a escolha de uma braquiária ou de um consórcio com leguminosas não é meramente operacional, mas representa uma intervenção regenerativa que fortalece o ciclo do carbono, melhora a estrutura do solo e amplia a resiliência das lavouras.

Outro aspecto relevante é a dimensão cultural e educativa da literacia ecológica no contexto do SPD. A prática do plantio direto exige do agricultor uma ruptura cultural: abandonar o arado, historicamente símbolo de preparo da terra, para confiar em processos invisíveis, como a atividade microbiana e a dinâmica das raízes. Essa transição demanda confiança e compreensão, características da literacia ecológica. Agricultores que não desenvolvem essa percepção tendem a reproduzir práticas convencionais, mesmo sob o rótulo de SPD. Já aqueles que adquirem literacia ecológica transformam-se em agentes de mudança, disseminando conhecimento e fortalecendo o caráter regenerativo da prática.

A dimensão comunitária também não pode ser ignorada. A literacia ecológica aplicada ao SPD vai além do indivíduo, influenciando grupos e territórios. Quando comunidades agrícolas compartilham experiências, trocam sementes, organizam dias de campo e discutem estratégias de manejo, constroem um saber coletivo que amplia o potencial regenerativo da agricultura. Esse caráter social da literacia ecológica reforça o entendimento de que a regeneração não é tarefa isolada, mas uma ação integrada que envolve agricultores, técnicos, pesquisadores e a sociedade em geral.

Sob a ótica das mudanças climáticas, a literacia ecológica associada ao SPD revela sua importância estratégica. O agricultor que compreende o papel da palhada no sequestro de carbono, da diversificação de culturas na resiliência climática e da infiltração de água na mitigação de extremos hídricos, percebe o sistema produtivo como aliado no enfrentamento da crise global. Essa percepção não apenas transforma o manejo, mas insere o agricultor em um movimento maior de responsabilidade planetária, reforçando o caráter ético da literacia ecológica.

Ao refletir sobre a literacia ecológica do SPD, é possível concluir que sua relevância não se restringe à prática agrícola, mas se expande para o campo da sustentabilidade, da cultura e da ética. O SPD é um exemplo emblemático de como uma prática técnica pode se tornar instrumento regenerativo quando guiada pela leitura crítica e consciente da natureza. A literacia ecológica é, portanto, a ponte que conecta o conhecimento ecológico ao fazer agrícola, transformando a técnica em regeneração, e o agricultor em gestor ativo da vida do solo e da paisagem.

Em síntese, o Sistema Plantio Direto, quando conduzido sob a ótica da literacia ecológica, transcende a condição de tecnologia conservacionista e se consolida como um instrumento central da agricultura regenerativa. Ele devolve vitalidade ao solo, promove a resiliência dos ecossistemas e reafirma a interdependência entre produção e natureza. Mais do que uma técnica, o SPD torna-se uma expressão da capacidade humana de aprender com os sistemas vivos, de respeitar seus limites e de construir um futuro em que produtividade e equilíbrio ecológico caminham juntos. A literacia ecológica, nesse contexto, não é um acessório, mas a essência que confere sentido regenerativo ao sistema.