O zelo que falta – A urgência do cuidado ecológico nos ambientes produtivos tropicais
Por Afonso Peche Filho, pesquisador científico do Instituto Agronômico de Campinas (IAC)

Na paisagem agrícola tropical, marcada por vastos horizontes de monoculturas, solos desnudos e rios assoreados, impera uma lógica produtiva que ignora as bases ecológicas do território. A agricultura convencional, ainda dominante no Brasil e em outros países tropicais, insiste em práticas que fragilizam a resiliência dos agroecossistemas: mobilização intensa do solo, uso abusivo de agrotóxicos e fertilizantes sintéticos, supressão da biodiversidade e desrespeito às dinâmicas hídricas e biológicas da paisagem.
Nesse cenário, cresce a necessidade de um novo paradigma que transcenda o produtivismo e traga à tona o valor do zelo ecológico como princípio orientador da produção agrícola. Este zelo, expressão do cuidado ativo com a vida que sustenta a produção, é o que falta na agricultura contemporânea. E sua ausência compromete não somente a sustentabilidade ambiental, mas a própria viabilidade da produção no médio e longo prazo.
A agricultura tropical e o desafio ecológico
A tropicalidade exige uma agricultura que respeite suas singularidades: altas taxas de mineralização da matéria orgânica, solos estruturalmente frágeis, chuvas concentradas e intensas, além de uma biodiversidade exuberante, mas altamente sensível a distúrbios.
Ao aplicar modelos desenvolvidos para zonas temperadas, a agricultura convencional impõe às paisagens tropicais um padrão artificial e insustentável de uso da terra. A exposição do solo à intempérie, por exemplo, rompe com o princípio elementar da proteção dos agregados e da biota. O uso contínuo de fertilizantes solúveis alimenta plantas, mas empobrece o solo, dissolvendo a matéria orgânica, acidificando o perfil e provocando desequilíbrios na microbiota. Os agrotóxicos, aplicados em larga escala, eliminam não somente as pragas, mas também polinizadores, inimigos naturais e organismos benéficos do solo.
Esse modelo de manejo, além de causar degradação progressiva, aumenta a dependência externa da agricultura, tornando-a refém de insumos caros e escassos. Ao mesmo tempo, mina a base ecológica que sustenta os ciclos produtivos: o solo vivo, a água limpa, a biodiversidade funcional e o equilíbrio climático.
O plantio direto regenerativo como alternativa
Dentro desse contexto adverso, o sistema plantio direto com base na regeneração produtiva desponta como uma proposta promissora para reconectar produção e ecologia. Ao conservar a palhada sobre o solo, evitar revolvimento excessivo e integrar culturas diversas com plantas de cobertura, o plantio direto regenerativo promove:
- A proteção da estrutura do solo, reduzindo erosão e compactação superficial.
- A restituição da matéria orgânica, por meio da ciclagem contínua de resíduos vegetais.
- A ativação biológica do solo, estimulando microrganismos, minhocas e raízes profundas.
- A reconstrução do ciclo da água, com aumento da infiltração, redução do escoamento e recarga hídrica.
- A redução da dependência de insumos químicos, pela ação de plantas funcionalmente selecionadas e da biota do solo.
No entanto, apesar dos avanços do sistema plantio direto, seu uso ainda é frequentemente parcial e desvirtuado. Muitos produtores adotam o sistema apenas como estratégia mecânica, sem compreender seus fundamentos ecológicos. A palhada é insuficiente, a rotação é ignorada e os bioindicadores de qualidade do solo são desprezados. Falta o zelo.
O zelo ecológico: mais que técnica, uma atitude
O zelo ecológico não é apenas uma prática técnica, mas uma atitude contínua de observação, respeito e cooperação com os processos naturais. É o reconhecimento de que cada metro de solo, cada gota de água e cada ser vivo desempenham funções essenciais para a vitalidade do sistema produtivo.
Zelo ecológico se expressa em ações concretas:
- Manter o solo sempre coberto, com diversidade de plantas vivas e resíduos vegetais.
- Observar os sinais da vida do solo: raízes saudáveis, presença de minhocas, fungos, cheiros e estrutura friável.
- Evitar ao máximo o uso de químicos de largo espectro, optando por controle biológico e bioinsumos.
- Plantar espécies que alimentam o solo e os polinizadores, respeitando as épocas e funções.
- Integrar vegetação nativa, matas ciliares e corredores ecológicos à paisagem agrícola.
- Valorizar o conhecimento local e a escuta ativa dos agricultores, que leem a terra com os pés e os olhos.
A pegada ecológica dos ambientes produtivos
Enquanto o mundo discute a “pegada de carbono”, a agricultura precisa ampliar sua visão e adotar o conceito de pegada ecológica dos sistemas produtivos. Trata-se de mensurar e reduzir os impactos negativos da produção agrícola sobre os fatores ecológicos vitais:
- Quanto solo está sendo destruído por erosão ou compactação?
- Quanta água está sendo contaminada ou perdida por escorrimento?
- Quanta biodiversidade está sendo eliminada?
- Quanto carbono está sendo liberado ou sequestrado?
- Quantos serviços ecossistêmicos estão sendo comprometidos?
Responder a essas perguntas exige transparência, monitoramento e responsabilidade ecológica. E isso só será possível se houver mudança de consciência no campo, uma transição da lógica extrativista para uma lógica de cuidado.
O zelo que falta: resignação ou reconexão?
A ausência de zelo ecológico é também um reflexo de falta de formação técnica, de políticas públicas orientadas à regeneração, e de uma cultura agrária distanciada da ecologia. Falta conhecimento, sim, mas também falta resignação no sentido mais nobre do termo: aceitar o protagonismo da natureza nos processos produtivos e readequar as práticas humanas com humildade.
O produtor rural, longe de ser o vilão, é a peça-chave dessa mudança. Quando bem orientado, apoiado e valorizado, ele se torna guardião da vida da paisagem, agente da regeneração e protagonista de um novo pacto com a terra.
Caminhos possíveis
Para que o zelo ecológico se torne prática cotidiana nas propriedades agrícolas, algumas estratégias são urgentes:
- Formação continuada de técnicos e agricultores em agroecologia, manejo regenerativo e leitura da paisagem.
- Incentivos fiscais e créditos rurais condicionados à adoção de práticas conservacionistas.
- Criação de indicadores simples e eficazes para avaliação da pegada ecológica da propriedade.
- Valorização dos produtos oriundos de manejos ecológicos, com certificações acessíveis e mercados diferenciados.
- Integração entre ciência, saber popular e políticas públicas, com apoio a núcleos de regeneração local.
Conclusão: o gesto que restaura
O título “O zelo que falta” não é um lamento, mas um chamado. Ele aponta a carência de cuidado, mas também sugere sua possibilidade. Zelar pela terra não é retroceder, é avançar com consciência. É entender que a produtividade verdadeira não se mede apenas em sacas por hectare, mas em anos de vida fértil, saúde da água, diversidade no campo e dignidade no trabalho.
A agricultura tropical, para ser de fato viável e duradoura, precisa ser também regeneradora, sensível e eticamente orientada. O zelo ecológico é o alicerce invisível que sustenta toda a cadeia produtiva, da semente à mesa. Sem ele, o futuro da agricultura é incerto. Com ele, floresce um novo modelo, mais justo, mais vivo, mais belo, e profundamente necessário.