Práticas da Agricultura Sustentável
Por Afonso Peche Filho, pesquisador científico do Instituto Agronômico de Campinas (IAC)| Doutorado em Ciências Ambientais
Falar em agricultura sustentável hoje é, ao mesmo tempo, reconhecer um imperativo e enfrentar uma contradição. Imperativo, porque o modelo agrícola convencional, centrado na exploração intensiva de recursos naturais e na dependência de insumos externos, já mostrou suas limitações ambientais, sociais e até econômicas. Contradição, porque muitas vezes o termo “sustentável” é usado apenas como adjetivo de marketing, esvaziado de conteúdo técnico, servindo mais para apaziguar consciências do que para orientar mudanças reais no manejo agrícola.
A agricultura sustentável não pode ser reduzida a um conjunto de práticas isoladas ou a certificações formais; ela precisa ser entendida como um sistema integrado de gestão dos recursos da propriedade, capaz de manter a produtividade sem sacrificar a base ecológica que a sustenta. Isso significa tratar o solo como organismo vivo, a água como patrimônio coletivo e a biodiversidade como aliada estratégica.
O solo, por exemplo, não é apenas um suporte físico para raízes. Ele é um sistema complexo de interações químicas, físicas e biológicas, onde a matéria orgânica cumpre papel central na retenção de água, na ciclagem de nutrientes e na formação de agregados estáveis. Cobertura permanente, rotação de culturas e uso de adubos verdes não são “opções”, mas condições essenciais para que o solo mantenha sua função produtiva. Quando a cobertura é negligenciada ou o revolvimento excessivo se torna prática recorrente, o custo não é apenas erosão e perda de nutrientes, é a perda progressiva da resiliência produtiva da área.
A água, por sua vez, precisa ser manejada como recurso estratégico, não como insumo descartável. Em um cenário de instabilidade climática, onde secas prolongadas e chuvas concentradas se alternam, conservar nascentes, proteger matas ciliares, investir em infraestrutura de infiltração e regularização de vazões deixa de ser ação ambientalista para se tornar medida de segurança de produção. Um agricultor que depende de irrigação, mas não investe em eficiência de uso e em sistemas de retenção no solo, está construindo sua própria vulnerabilidade.
A biodiversidade é talvez o pilar mais negligenciado. A ideia de que qualquer planta espontânea é “mato” e qualquer inseto é “praga” cria agroecossistemas frágeis, onde a única defesa é química, cara, instável e com efeitos colaterais nocivos. Um sistema produtivo com alta diversidade de espécies cultivadas e áreas de refúgio para inimigos naturais reduz naturalmente a pressão de pragas e doenças, quebrando ciclos biológicos indesejáveis. Nesse contexto, integrar cultivos, pastagens e árvores, por meio de sistemas ILPF, agroflorestas ou cercas vivas multifuncionais, deixa de ser uma tendência e se torna uma resposta lógica.
No uso de insumos, a transição sustentável exige mais critério do que substituição pura e simples. Não basta trocar um produto químico por um bioinsumo sem entender seu modo de ação e sua compatibilidade com o manejo. É preciso reduzir a dependência de insumos externos por meio do fortalecimento da biologia do solo, da reciclagem de nutrientes dentro da propriedade e do uso criterioso de remineralizadores e compostos orgânicos. A sustentabilidade não está apenas no “o que” se aplica, mas principalmente no “quanto”, “quando” e “por quê” se aplica.
Do ponto de vista social e econômico, nenhuma prática agrícola será sustentável se o produtor estiver isolado. Organizações coletivas, como cooperativas e associações, ampliam o acesso a mercados diferenciados, reduzem custos por meio de compras conjuntas e fortalecem o poder de negociação. Além disso, sustentabilidade requer atualização constante: dias de campo, treinamentos e intercâmbios entre agricultores não são luxo, mas necessidade para manter a competitividade e a eficiência técnica.
Na minha visão, a implementação das diretrizes de agricultura sustentável deve seguir um princípio de progressividade consciente: começar pelo diagnóstico realista da propriedade, identificar as áreas mais críticas e priorizar ações com alto retorno ambiental e econômico. Muitas vezes, o caminho mais inteligente é iniciar com proteção de solo e água, depois evoluir para diversificação de cultivos e integração de sistemas, e só então buscar certificações ou selos ambientais. Inverter essa ordem, buscando primeiro o “selo” antes de consolidar as práticas, é cair na armadilha da sustentabilidade cosmética.
Sustentabilidade na agricultura é, portanto, uma escolha estratégica e processual. Não se trata de aplicar um “pacote verde” e esperar resultados imediatos, mas de construir ano a ano um sistema produtivo que se fortaleça com o tempo. Isso exige disciplina, registro das práticas e abertura para ajustes constantes. O agricultor que entende essa lógica não está apenas produzindo alimentos está produzindo futuro.
Se quisermos que a expressão “agricultura sustentável” mantenha credibilidade técnica, precisamos defendê-la de dois extremos igualmente nocivos: a resistência inflexível de quem vê nela apenas “modismo ambiental” e a banalização oportunista de quem a transforma em marketing sem conteúdo. No meio desse caminho, há espaço para uma agricultura que produz, conserva e respeita, e esse espaço, a meu ver, deve ser a meta de qualquer propriedade rural que queira permanecer viável nas próximas décadas.









