O zelo que falta – A urgência do cuidado ecológico nos ambientes produtivos tropicais

24-04-2025

Por Afonso Peche Filho, pesquisador científico do Instituto Agronômico de Campinas (IAC)

Na paisagem agrícola tropical, marcada por vastos horizontes de monoculturas, solos desnudos e rios assoreados, impera uma lógica produtiva que ignora as bases ecológicas do território. A agricultura convencional, ainda dominante no Brasil e em outros países tropicais, insiste em práticas que fragilizam a resiliência dos agroecossistemas: mobilização intensa do solo, uso abusivo de agrotóxicos e fertilizantes sintéticos, supressão da biodiversidade e desrespeito às dinâmicas hídricas e biológicas da paisagem.

Nesse cenário, cresce a necessidade de um novo paradigma que transcenda o produtivismo e traga à tona o valor do zelo ecológico como princípio orientador da produção agrícola. Este zelo, expressão do cuidado ativo com a vida que sustenta a produção, é o que falta na agricultura contemporânea. E sua ausência compromete não somente a sustentabilidade ambiental, mas a própria viabilidade da produção no médio e longo prazo.

A agricultura tropical e o desafio ecológico

A tropicalidade exige uma agricultura que respeite suas singularidades: altas taxas de mineralização da matéria orgânica, solos estruturalmente frágeis, chuvas concentradas e intensas, além de uma biodiversidade exuberante, mas altamente sensível a distúrbios.

Ao aplicar modelos desenvolvidos para zonas temperadas, a agricultura convencional impõe às paisagens tropicais um padrão artificial e insustentável de uso da terra. A exposição do solo à intempérie, por exemplo, rompe com o princípio elementar da proteção dos agregados e da biota. O uso contínuo de fertilizantes solúveis alimenta plantas, mas empobrece o solo, dissolvendo a matéria orgânica, acidificando o perfil e provocando desequilíbrios na microbiota. Os agrotóxicos, aplicados em larga escala, eliminam não somente as pragas, mas também polinizadores, inimigos naturais e organismos benéficos do solo.

Esse modelo de manejo, além de causar degradação progressiva, aumenta a dependência externa da agricultura, tornando-a refém de insumos caros e escassos. Ao mesmo tempo, mina a base ecológica que sustenta os ciclos produtivos: o solo vivo, a água limpa, a biodiversidade funcional e o equilíbrio climático.

O plantio direto regenerativo como alternativa

Dentro desse contexto adverso, o sistema plantio direto com base na regeneração produtiva desponta como uma proposta promissora para reconectar produção e ecologia. Ao conservar a palhada sobre o solo, evitar revolvimento excessivo e integrar culturas diversas com plantas de cobertura, o plantio direto regenerativo promove:

  • A proteção da estrutura do solo, reduzindo erosão e compactação superficial.
  • A restituição da matéria orgânica, por meio da ciclagem contínua de resíduos vegetais.
  • A ativação biológica do solo, estimulando microrganismos, minhocas e raízes profundas.
  • A reconstrução do ciclo da água, com aumento da infiltração, redução do escoamento e recarga hídrica.
  • A redução da dependência de insumos químicos, pela ação de plantas funcionalmente selecionadas e da biota do solo.

No entanto, apesar dos avanços do sistema plantio direto, seu uso ainda é frequentemente parcial e desvirtuado. Muitos produtores adotam o sistema apenas como estratégia mecânica, sem compreender seus fundamentos ecológicos. A palhada é insuficiente, a rotação é ignorada e os bioindicadores de qualidade do solo são desprezados. Falta o zelo.

O zelo ecológico: mais que técnica, uma atitude

O zelo ecológico não é apenas uma prática técnica, mas uma atitude contínua de observação, respeito e cooperação com os processos naturais. É o reconhecimento de que cada metro de solo, cada gota de água e cada ser vivo desempenham funções essenciais para a vitalidade do sistema produtivo.

Zelo ecológico se expressa em ações concretas:

  • Manter o solo sempre coberto, com diversidade de plantas vivas e resíduos vegetais.
  • Observar os sinais da vida do solo: raízes saudáveis, presença de minhocas, fungos, cheiros e estrutura friável.
  • Evitar ao máximo o uso de químicos de largo espectro, optando por controle biológico e bioinsumos.
  • Plantar espécies que alimentam o solo e os polinizadores, respeitando as épocas e funções.
  • Integrar vegetação nativa, matas ciliares e corredores ecológicos à paisagem agrícola.
  • Valorizar o conhecimento local e a escuta ativa dos agricultores, que leem a terra com os pés e os olhos.

A pegada ecológica dos ambientes produtivos

Enquanto o mundo discute a “pegada de carbono”, a agricultura precisa ampliar sua visão e adotar o conceito de pegada ecológica dos sistemas produtivos. Trata-se de mensurar e reduzir os impactos negativos da produção agrícola sobre os fatores ecológicos vitais:

  • Quanto solo está sendo destruído por erosão ou compactação?
  • Quanta água está sendo contaminada ou perdida por escorrimento?
  • Quanta biodiversidade está sendo eliminada?
  • Quanto carbono está sendo liberado ou sequestrado?
  • Quantos serviços ecossistêmicos estão sendo comprometidos?

Responder a essas perguntas exige transparência, monitoramento e responsabilidade ecológica. E isso só será possível se houver mudança de consciência no campo, uma transição da lógica extrativista para uma lógica de cuidado.

O zelo que falta: resignação ou reconexão?

A ausência de zelo ecológico é também um reflexo de falta de formação técnica, de políticas públicas orientadas à regeneração, e de uma cultura agrária distanciada da ecologia. Falta conhecimento, sim, mas também falta resignação no sentido mais nobre do termo: aceitar o protagonismo da natureza nos processos produtivos e readequar as práticas humanas com humildade.

O produtor rural, longe de ser o vilão, é a peça-chave dessa mudança. Quando bem orientado, apoiado e valorizado, ele se torna guardião da vida da paisagem, agente da regeneração e protagonista de um novo pacto com a terra.

Caminhos possíveis

Para que o zelo ecológico se torne prática cotidiana nas propriedades agrícolas, algumas estratégias são urgentes:

  • Formação continuada de técnicos e agricultores em agroecologia, manejo regenerativo e leitura da paisagem.
  • Incentivos fiscais e créditos rurais condicionados à adoção de práticas conservacionistas.
  • Criação de indicadores simples e eficazes para avaliação da pegada ecológica da propriedade.
  • Valorização dos produtos oriundos de manejos ecológicos, com certificações acessíveis e mercados diferenciados.
  • Integração entre ciência, saber popular e políticas públicas, com apoio a núcleos de regeneração local.

Conclusão: o gesto que restaura

O título “O zelo que falta” não é um lamento, mas um chamado. Ele aponta a carência de cuidado, mas também sugere sua possibilidade. Zelar pela terra não é retroceder, é avançar com consciência. É entender que a produtividade verdadeira não se mede apenas em sacas por hectare, mas em anos de vida fértil, saúde da água, diversidade no campo e dignidade no trabalho.

A agricultura tropical, para ser de fato viável e duradoura, precisa ser também regeneradora, sensível e eticamente orientada. O zelo ecológico é o alicerce invisível que sustenta toda a cadeia produtiva, da semente à mesa. Sem ele, o futuro da agricultura é incerto. Com ele, floresce um novo modelo, mais justo, mais vivo, mais belo, e profundamente necessário.